terça-feira, 17 de outubro de 2017

O NOTÍVAGO


                                    Sabe o que é acordar de madruga e ver o sono se esvair pelos dedos? Não se ouve o estrilar do grilo, o coaxar do sapo martelo e, muito menos, o piar da coruja na cumeeira da casa velha. Nada de som e de luz... um vazio imenso, apenas. Os casais apaixonados acordam de repente, na madrugada do leito, para fazerem amor. Mas eu, desperto tão cedo, no vazio do quarto, para pensar na vida e falar de mim mesmo. Seriam coisas da idade ou perturbação da mente? Não sei!

                                   No silêncio, que me cerca, busco alento na literatura e nos rabiscos do papel. Nessa arte solitária, procuro externar meus pensamentos e sentimentos perdidos no tempo. Lembro-me do meu pai e dos meus avós que se foram. Recordo com saudades da minha infância em Guaimbê SP, correndo pelas suas ruas descalças, sem compromisso com a vida. Como na película de um filme antigo, vejo a vida passar pela minha memória, desgastada pelo tempo. Por falar nisso, quanto tempo me resta? Sei lá!

                                   Amigos que se foram, antes do combinado, sem me avisar. Romances desfeitos, por coisas banais. Os filhos que, um dia, nasceram pela graça de Deus. Viagens internacionais, que não aconteceram, mas que se materializaram nos projetos do filho empreendedor. As fotos amareladas no álbum de família demonstram que o tempo é ingrato e não perdoa. Carcomido pela vida, o corpo dá sinais de cansaço. Mas a memória, treinada para a arte da escrita, ainda resiste, feito soldado nas trincheiras de uma guerra insana.

                                   Acordar de madrugada, sem sono, é privilégio de poucos. Reunir todos os pensamentos perdido no tempo, assim numa folha de papel, não é fácil. Lá longe, muito longe, a água cristalina de uma cachoeira, caminha lentamente em busca do mar. Mas eu aqui, fico a pensar na natureza da vida. O pensamento é uma canoa, navega o corpo e a alma voa. Por isso flutuo por mundos inimagináveis e por galáxias, dantes intransponíveis. Feito um falcão trocando suas penas, renovo os meus conceitos sobre a vida e a morte.

                                   Não vejo a hora de o dia amanhecer. Quero, desesperadamente, ouvir o ganir do cachorro, no portão da casa vizinha; o cantar do galo, no poleiro; o chilrear dos pardais desbotados e, é claro, as primeiras vozes dos anciões indos rumo á padaria do seu Manoel. A mudez da madrugada começa a me importunar. Tenho necessidade de ouvir vozes, sentir o calor humano das pessoas, mesmo que distantes. Essa coisa louca de respirar a agitação cotidiana, como se a solidão não fizesse parte da vida. Uma vida bandida, talvez.  

                                   Acordar de madrugada, sem sono, é privilégio de poucos.

Peruíbe SP, 17 de outubro de 2017

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