sexta-feira, 7 de abril de 2017

O PARLAMENTO DEFINHA


                                    Tenho comigo, que todo poder embriaga e corrompe. Por isso, todas as vezes que falo sobre ele, busco referência em duas obras literárias, de domínio público, a saber: “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel e “A Revolução dos Bichos”, de George Owell”. As pessoas nascem puras, mas o ambiente em que vivem as corrompem, pois o homem se adapta com facilidade ao meio em que habita, fato retratado na obra “O Cortiço”, de Aloísio de Azevedo. Também é fascinante dissertar sobre isso.

                                   Nada nos envaidece tanto, quando estamos investidos de títulos e honrarias. Sentimo-nos deuses, quando temos uma insígnia cravada na nossa vestimenta ou na nossa mente. Parece que não somos mais terrestres e, sim, seres sobrenaturais, com poderes divinos. Uma vez nomeados ou empossados, esquecemo-nos das pessoas à nossa volta ou dos amigos mais próximos. Assim aconteceu, por exemplo, com um tal de “caçador de marajá”. Mas um final amargo é reservado para essas pessoas arrogantes, que se acham intocáveis.

                                   Se têm uma classe que se encaixa perfeitamente ao que ora narro, é dos mandatários e dos políticos. Ao galgarem o mais alto posto na sociedade, esquecem que já foram povo ou pobres. Não entendem que tudo têm um tempo e um fim. E contra isso, não há remédio. As regalias do poder hipnotizam essas pessoas e fazem delas, escravas da luxúria. Bebem o sangue do povo, no cálice da corrupção. Vendem a própria alma, em nome do prazer, que as mordomias proporcionam.

                                   Foi numa dessas observâncias, num desses momentos de solidão, que notei que o nosso Parlamento (Câmara dos Comuns e Câmara os Lordes), sofre de uma doença incurável, chamada “corrupção sistêmica”. Com menos de cem dias, após serem empossados, os legisladores já estão negociando o destino do “Reino Caiçara”, não em função do bem comum, mas, sim, em razão de interesses próprios. Não se importam com a esperança e a angustia do povo. Esse, também, foi o comportamento do reino anterior.

                                   Assim como em outros reinos além-mar, o nosso também tem donos. Tanto a Corte, quanto o Parlamento, rezam na cartilha dos mandatários. Chego a triste conclusão de que o rei reina, mas não governa. Além do que, corre à boca solta, de que o Rei tem uma eminência parda. Tanto ele, quanto os parlamentares, são apenas marionetes, pau mandados, daqueles que manipulam o poder no “Reino Caiçara”. Ao que parece, são três mandatários, E o povo? Ora o povo! Ele só é importante em época de eleição, quando é comprado com cestas básicas, dentaduras ou milheiros de tijolos.

                                   Quando o Parlamento, em conluio com a Corte, decidem à porta fechada, assuntos relevantes, longe do conhecimento do povo e da imprensa, demonstram que a lama da propina e da improbidade administrativa, já engoliu a honra e a dignidade dos governantes. Tentam maquiar as mazelas da coroa, postando em “redes sociais” (tabloides modernos), reuniões desnecessárias e inaugurações de elefantes brancos, a fim de ludibriar os súditos desavisados e vassalos menos esclarecidos. E a Suprema Corte, que só se preocupa com os holofotes da fama, finge nada ver, dizendo que a justiça é cega, muda e surda.

                                   As Províncias estão jogadas às traças e os pagadores de impostos, veem suas patacas (moedas) esvaírem pelo ralo da malversação do dinheiro público. O Bailarino, o Sacristão, o Hércules, o Publicano, a Cinderela, a Jurisconsulta, bem como, os demais, já se envergaram e não mais representam a vontade popular. Entre uma negociata e outra, realizada na calada da noite e longe do conhecimento do povo, o Parlamento vai se definhando aos poucos. Vai se distanciando do sagrado dever de fiscalizar a corte, de legislar e defender o bem comum.

                                   Enquanto os mandatários do poder se assenhoram do patrimônio público, o Rei dorme o sono dos anjos, o Parlamento vive o seu faz de conta, a Suprema Corte posa nas manchetes de jornal e os súditos carregam o fardo da pobreza e da ignorância. Que Deus se apiede de nós, para que não nos definhemos também!

 

Peruíbe SP, 07 de abril de 2017.

domingo, 2 de abril de 2017

CARNE FRACA


                      Tenho gravado na retina da minha infância, cenas bucólicas de minha terra natal. As acolhedoras ruas descalças; o jardim florido, da praça matriz; o modesto estádio de futebol; as celas desabitadas da delegacia; as marchinhas de carnaval; as cercas divisórias, entrelaçadas com melão de são caetano; o frondoso  pé de manga burbom; o cinema de paredes envelhecidas; as missas em latim, do padre Antônio, os desfiles cívicos, com seus carros alegóricos, a escola primária. Assim era Guaimbê SP, berço da minha vida.

                                   Foi assim, aos poucos, que minha vida foi desenhando e formando a minha personalidade. Com a argila do tempo, aquele povoado foi moldando o cidadão que sou hoje. Não posso esquecer meu amor platônico, pela filha da professora primária. E porque não falar das brincadeiras infantis, sob a proteção das noites enluaradas. Aos sábados, os roceiros vinham fazer as compras da semana e as ruas pareciam um mercado persa. Lindo de se ver!

                                   Ali naquele cantinho do Estado, um lugar esquecido pelo progresso selvagem, aprendi respeitar a natureza, obedecer meus pais, amar os idosos, a ter fé imensurável em Deus e, acima de tudo, rezar a cartilha da moral e dos bons costumes. Descobri que a minha liberdade termina, onde começa a do vizinho. Os filhos do progresso e da tecnologia chamam-me de retrógado... não me importo.

                                   Uma das cenas infantis, gravada para sempre na minha memória, era a forma arcaica do abate de animais, em especial, o gado. Lá vinham dois ou três bovinos caminhando lentamente em direção ao matadouro. Primeiro, eram confinados num curral de madeira, anexado ao prédio. Ali permaneciam até o momento da hora derradeira. Eu observava o olhar de tristeza de cada um deles e me entristecia também.

                                   O matadouro distava uns mil metros da última rua descalça. Era um salão grande, com roldanas no teto e argolas no chão. Com uma corda no pescoço, o animal era conduzido até o centro, sendo que a corda passava pela argola. Ali, de cabeça baixa, recebia um golpe certeiro de uma faca, na altura da nuca, próximo ao chifre. Ao cair no solo, já desfalecido, dava o último e pesaroso mugido. Nas narinas o ultimo suspiro de vida e, na boca, uma espuma esbranquiçada, com sabor da morte.

                                   Sem o pulsar das veias e a batidas do coração, seu corpo desfalecido era içado por correntes, presas às roldanas no teto. A partir dali, facas afiadas retalhavam o corpo ainda quente, retirando as vísceras e o couro. Na dança das facas, as mãos dos açougueiros, esquartejavam o boi, enquanto o sangue se esvaia pelo ralo. Algum tempo depois, não mais existia o boi e nem a vida, apenas pedaços (contrafilé, alcatra, cupim, acém, etc), que iriam abastecer açougues.

                                   Não havia frigorifico, vigilância sanitária, ministério da agricultura, polícia federal, imprensa, propina. Havia apenas consumidores simples que, assim como eu, assistiam ao vivo e a cores, todo o ritual do abate e da distribuição da carne. Tudo era consumido sem medo, até mesmo a língua, o cupim, o mocotó e o testículo. O tempo se foi e o matadouro envelheceu, devorado pelo mato ao derredor. Embora o tempo tenha esquartejado as paredes daquele lugar, ele jamais saiu das retinas da minha infância.

                                   Lembro-me de um fato surreal, quando uma mulher recatada, esposa de um renomado comerciante da cidade, deu um sapeca iaiá (traiu) com um vaqueiro rude. Aquele ato impensado dela, adocicado pela atração física, correu de boca em boca, através da rádio peão. Por muito tempo, aquela escorregada extra matrimônio, povoou as conversas de boteco e as fofocas das alcoviteiras. Envergonhada, ela não saiu mais de casa; mas já era tarde, pois o estrago estava feito.

                                   Mas um dia, quando isso chegou aos ouvidos do vigário Antônio, pároco do lugarejo, ele de um jeito consternado e olhar divino, disse: “A carne é fraca”. Foi então que entendi que, por estar sujeita as tentações, a carne humana é fraca; não a carne bovina, pois ela está sujeita apenas aos desejos da procriação.

 

Peruíbe SP, 02 de abril de 2017.