Somos
uma família centenária. Os nossos tataravós tinham o sobrenome de Syzygium Jambolanum. Contam os
pesquisadores, que as sementes de nossa família Myrtaceae, vieram da Índia, em
época não declarada. Aqui, no “Reino Caiçara”, somos tratados como Jambolão,
mas em outros reinos, somos conhecidos como: azeitona-preta, oliveira, jamelão,
brinco-de-viúva, guape, etc e tal. No meu país de origem, i.e, a Índia, além do
consumo natural, os nossos frutos, são usados na confecção de doces e tortas.
Eu,
José Jambolão, minha esposa Maria Jambolão e minha filha Florisbela Jambolão,
nascemos há centenas de anos, numa esquina qualquer do “Reino Caiçara”. Quando
nascemos, o reino nem existia. Ao nosso lado, havia outras espécies de árvores
e de plantas. Os animais, insetos e pássaros, acompanharam o nosso crescimento
e a nossa infância. Dali, podíamos contemplar o mar, porque não havia árvores
de concreto para ofuscarem a nossa visão. Os bichos de lata e que soltavam
“pum” (peido) fedorentos, não existiam nem mesmo em nossas mentes.
À
medida que ganhávamos forma adulta, vinham abrigar-se entre nossos galhos e
folhas, os bichos e os pássaros. Nós nos encantávamos com os filhotes nascendo
em ninhos, confeccionados em nossos galhos e camuflados por nossas folhas. As
nossas sedes eram saciadas por chuvas abundantes, que, além de banhar nossos
galhos, folhas e caules, penetravam suavemente no solo, proporcionando a
energia necessária que tanto precisávamos para sobreviver.
Trouxemos
em nosso DNA, a altura imponente de cerca de dez metros de altura, sendo
chamadas pelas demais plantas, de árvore frondosa. O nosso fruto, medindo entre
dois e três cm de comprimento, envolto em polpa carnosa e apesar de sabor
adstringente, era agradável ao paladar. A casca do nosso caule era usada na
cura de hemorragia, leucorreia e desenteria. Já o pó da nossa semente era usado
contra diabetes e prisão de ventre.
Eu,
minha esposa e minha filha, vivíamos numa felicidade plena. Embora estáticas
ali, brincávamos com o vento, o qual assoviava ao passar entre nós. À noite
comtemplávamos a beleza do céu estrelado e da luz da lua. Já durante o dia,
suportávamos o sol escaldante e nos regozijamos em proporcionar sombra aos
transeuntes (animais, aves e insetos). Rezámos para não sermos atingidos pelos raios,
durante longas tempestades. Nas noites enluaradas, eu, minha esposa e minha
filha, ficávamos conversando sobre assuntos diversos, como por exemplo, a fauna
e a flora.
Mas
os anos passaram, a vida passou, até que um dia, um padre vindo de outro
continente, aportou por aqui, onde nem “Reino Caiçara” ainda era. Não foi
bendito o dia, pois, a partir dali, o nosso destino seria selado. A fome e a
ganância do bicho-homem seriam plantadas em nossa terra. Em nome da ganância,
criou-se um desmatamento incontrolável. Atrás dele, as construções de taperas,
formando povoados. Os índios, seres nativos, não nos atacavam, pois, tirava de
nós, o suficiente para sobreviverem. É certo que de lá para cá, não tivemos
mais sossego.
A
nossa vida bucólica, foi violentada e, de forma selvagem, perdemos o encanto
pela vida. De lá para cá, durante as noites enluaradas, gastamos nosso tempo,
não mais com assuntos diversos, mas, sim, com lamúrias sobre um futuro incerto.
A velhice chegou, mas continuávamos firmes, pois as grossuras de nossos caules
permitiam a ousadia de resistirmos ao tempo. Não havia dúvidas de que teríamos
outras centenas de anos pela frente, se não fossemos afrontados. Os nossos
frutos saciavam a fome dos viajores que por aqui passavam.
Um
dia, sem que se esperasse, o progresso bateu á nossa porta. Como um amante
intruso, violou nosso mundo, roubando nossa paz familiar. Matou todas as
árvores de menos porte, nossas vizinhas. Os seres viventes (animais, aves e
insetos), desapareceram como num toque de mágica. Os rios caudalosos foram
encobertos por um material duro (asfalto), secando assim, nossa esperança de
sobrevivência. Por sermos fortes, como as rochas, conseguimos sobreviver.
Sentimos saudade do canto dos pássaros, da canção da chuva, do frescor do rio,
do rugir das jaguatiricas, do zinir das abelhas. O progresso expulsou o clima
tropical e o calor ficou cada vez mais escaldante.
Florisbela
Jambolão, nossa filha única, na sua inocência vegetal e já desencantada da
vida, profetizou: “Um dia, o bicho-homem
vai nos matar”. Retruquei; “Matar por
que, não fazemos nenhum mal a ele ou a natureza?”. Maria Jambolão, minha
eterna companheira, com lágrimas escorrendo pelos galhos, resmungou em voz
alta: “A voracidade do progresso e a
ganância do bicho-homem, forma um veneno letal”.
Não
tardou e fomos surpreendidos por serviçais do reino, os quais, munidos de
motosserra, machados, serrotes e correntes, caminhões-guinchos, vieram nos
assassinar. Não adiantou o nosso clamor, pois o som ensurdecedor dos
motosserras feriu de morte nossos corações. As pancadas dos machados afiados
sangraram nossas artérias. Fomos esquartejados ali e nossos membros, arrastados
por correntes e colocados nas carrocerias dos caminhões. Gritar por socorro,
para que? Não mais havia árvores vizinhas para nos esconder e nem mesmo os
animais ferozes, para afugentar o bicho-homem.
Triste
saber que a ordem de execução, partiu do vice-Rei, o qual nem mesmo havia sido
empossado no trono do Reino Caiçara. Consta que ele era dono de uma construtora
de taperas e, por isso, tinha interesse imobiliário na construção de um
arranha-céu, no lugar onde nascemos. Dada a ordem imperial, nada mais restou
senão cumprir a ordem, desrespeitando a Lei do Idoso (somos centenários). Não
houve cortejo fúnebre, pois ninguém deu importância aos nossos corpos esquartejados,
sobre a carroceria dura de um caminhão oficial, pelas ruas silenciosas do reino.
Havia
uma árvore no meio do caminho. No meio do caminho havia uma árvore.
Peruíbe SP, 16 de janeiro de 2017